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Opinião - Súplica pela civilidade

Crédito: Divulgação *Daniel Medeiros Em 463 a.C., Ésquilo venceu o festival de teatro grego com a trilogia da qual fazia parte a peça As Sup...

Crédito: Divulgação

*Daniel Medeiros

Em 463 a.C., Ésquilo venceu o festival de teatro grego com a trilogia da qual fazia parte a peça As Suplicantes, única a chegar até nós. A tragédia conta a história de 50 mulheres egípcias que fogem para Argos em busca de proteção contra a lei do Egito que as obrigara a casar contra a vontade delas. O rei de Argos, Pelasgo, sabia que se aceitasse o pedido de asilo das estrangeiras, haveria guerra, pois o Egito não relevaria tal afronta às suas leis e costumes. Por outro lado, havia a tradição sagrada entre os gregos da hospitalidade, prática que cultivavam como um símbolo de sua civilidade. Importante ainda destacar que as suplicantes eram mulheres, negras e que adoravam outros deuses. Isto é, diferentes em quase tudo dos gregos, mas iguais no direito à dignidade. O rei então submete o pedido das egípcias aos cidadãos da cidade, que aprovam o pedido de acolhimento por unanimidade. A vontade geral, mesmo diante do perigo da guerra, não nega o que deve ser o direito de cada indivíduo, mesmo que de outra terra, outro sexo, outra fé: viver de maneira digna e honrada. 

Quase vinte e cinco séculos depois, deparamo-nos, diariamente, nos gestos de muitos -- adultos, jovens e crianças – a negação da condição fundante da comunidade ocidental: o respeito pela diferença. Nomes precisaram ser inventados para delinear esse mal que nega ao indivíduo o direito de conviver: racismo, xenofobia, machismo, etnocentrismo, gordofobia, capacitismo. E a lista não para de aumentar.

Recentemente, a atriz Samara Fellipo sofreu no coração a violência praticada contra sua filha, na escola onde ela estuda. A menina foi agredida por causa de sua pele preta, porque outras adolescentes consideraram essa diferença em relação às suas próprias peles uma autorização para o escárnio, para a humilhação, a discriminação, o anátema. Jovens que devem ter conversado previamente entre si e decidido causar um dano à colega por causa da sua cor da pele, ainda mais destacada na escola particular da elite branca paulista. Talvez acreditassem que a jovem filha da atriz não devesse estar ali, porque esse lugar não lhe pertence, por ser um lugar de privilégio e privilégio é um lugar branco. E fizeram o que fizeram, acreditando em outro privilégio tão comum às elites nesse país que vive sob o manto fantasmagórico de trezentos anos de escravidão: a impunidade.

A mãe, porém, não se intimidou e denunciou a escola e agora exige rigor na punição. Creio que essa punição deva ser pedagógica e não “criminal”. Não é uma solução tirar algo dessas adolescentes, mas dar-lhes o que lhes falta: civilidade. E também para as famílias delas, porque é difícil imaginar que uma distorção dessa gravidade na noção de indivíduo e de cidadão tenha sido obra apenas da escola. Punir com a expulsão, por exemplo, implica negar a elas aquilo para a qual a escola deveria estar preparada desde sempre: educar para a vida comum. Expulsar e devolver para os pais decidirem o que fazer com as agressoras pode ser um veneno ao invés de um remédio, pois não há garantia de que os pais necessariamente repudiam o que as filhas fizeram. Afinal, como saber de qual lugar saiu a primeira frase de preconceito racial, a primeira piada – que os racistas insistem em travestir de “brincadeira”-- ou mesmo o primeiro comentário sobre a cor preta da pele da menina que estuda com as filhas. 

O que deve ser exigido – e é hora de faze-lo efetivamente – é lembrar, como afirma a filósofa Hannah Arendt, que educar não é apenas transmitir conhecimentos, mas assumir responsabilidades. E a responsabilidade por práticas como essas que atingiram a jovem filha da senhora Samara – e que se espalham em uma cruel teia de violência por escolas públicas e privadas de todo o país – é de cada um de nós, como foi do rei Pelasgo e do povo de Argos. Se para acabar com a discriminação, que permite troçar do corpo do outro como se fosse um brinquedo de madeira, for preciso enfrentar a guerra, que cavemos trincheiras e portemos as armas possíveis para vencer esse mal. Ou logo não poderemos mais olhar uns nos olhos dos outros.

*Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo. 

@profdanielmedeiros


 

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