Não importa, de fato, qual grupo político incendiou o parlamento paraguaio. O que nos cabe aqui refletir é porque este tipo de insurgênc...
Não importa, de fato, qual grupo político incendiou o parlamento paraguaio. O que nos cabe aqui refletir é porque este tipo de insurgência e iconoclastia nunca aconteceria no Brasil.
"O povo brasileiro é um povo ordeiro, pacífico" ou "somos cordiais", lembrando Sérgio Buarque de Holanda. As frases acima são repetidas à exaustão, sempre que se questiona o motivo da inação do povo brasileiro frente aos históricos abusos, violências e toda sorte de privações e golpes impostos pelas elites, normalmente (mas não só) na condição de "governo".
Em primeiro lugar, é preciso que se diga que o "homem cordial" de Sérgio Buarque é sempre mal interpretado. Não quer dizer "homem educado", mas - ao contrário - homem que vive a partir das ações tomadas com o coração (em oposição à racionalidade). O "homem cordial" é portanto irracional, explosivo e imprevisível. Diríamos hoje, "sanguíneo". Longe, portanto, de Sérgio Buarque servir de parte da resposta a nossa proverbial imobilidade, ele é parte do paradoxo: sanguíneos mas submissos?
Por que, então, nossa resignação contra tudo o que nos oprime e prejudica?
A verdade é que o peso de nossa História frequentemente nos impele a manter a cabeça baixa ao invés de nos servir para levantar o olhar. As hierarquias sociais formadas na colonia mantiveram-se praticamente intactas na nossa Independência e depois na República. As diferenciações sociais se aprofundaram a tal ponto serem entendidas como "formadoras" do Brasil. Nem 1930, 1964 ou a "constituição cidadã" romperam com esta postura, ao contrário, reforçaram-na. 1930 cristaliza a ideia de que o "povo" precisa ser tutorado por "líderes benevolentes" e somente através destes é que se tem voz. 1964 forjou uma ideia de "nação" de costas para imensa maioria da população, o "povo" tinha que ser, portanto, urbano, temente a Deus, defensor da família monogâmica, heterossexual e patriarcal, reverenciar a "pátria" e odiar o "comunismo". A constituição de 1988 criou institucionalmente toda uma sorte de cidadãos de classe A (políticos, juízes, promotores, altos funcionários federais, militares e etc.) para os quais há tantos impeditivos à aplicação da lei, que não se pode dizer, no Brasil, que a Lei é para todos.
Durante todos séculos XIX e XX houve o fortalecimento do Estado brasileiro como um Estado essencialmente repressor. As polícias de SP e RJ, por exemplo, são responsáveis por 1/3 do total de mortes e gasta-se mais com polícia e exército no Brasil do que com quem ganha de 1 a 5 salários mínimos, proporcionalmente. Nosso Estado existe para o "law enforcement" e não para promover bem-estar social ou desenvolvimento de forma republicana.
Junte-se a isto um baixo nível médio de escolaridade e uma cultura política e associativa (aos moldes de Putnam) praticamente inexistente e a resposta parece se tornar mais clara. O brasileiro não vai nem à reuniões de condomínio e foi ensinado, pela ditadura, que "futebol, religião e política não se discute". A interdição da discussão política em meio público, feita institucionalmente, fortaleceu o legado do nosso sistema político profundamente não representativo e não responsivo. Na atual legislatura, o presidente da Câmara disse, com desassombro, que o congresso não precisa ouvir o povo. Não no Brasil.
Para finalizar, some-se a este quadro um sistema de comunicação oligopolizado. Jornais e televisões no Brasil nunca tiveram por missão a informação republicana e democrática, mas o controle do que a massa consome (e como consome) destas informações. O fundador deste oligopólio disse, certa vez, que a Globo era o que era menos pelo que dizia e mais pelo que deixava de dizer. Não foram poucos os episódios centrais de nossa história que os meios de comunicação tiveram papel-chave, quase sempre não virtuoso. Pesquisas recentes quantificam o domínio da Rede Globo (sem falar em outros meios também oligopolizados), 72% de todo consumo midiático no Brasil vem pelos seus diversos canais.
O brasileiro se vangloria de sua resiliência, afinal "o bom cabrito não berra". O que deveria ser um traço negativo, o governo e nossas elites fizeram acreditar que é virtuoso. "Não pense, trabalhe" e acredite piamente que um herdeiro de famílias escravocratas pode ser um "João Trabalhador", ou que milionários e latifundiários são aptos a discutirem as leis trabalhistas ou a sua previdência.
Precisamos urgentemente queimar nossas amarras históricas e revolucionarmos-nos.
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